Sem Porcelanas em Dresden III

Ninguém viu o sol nascer na aurora da Quarta-feira de Cinzas, 14 de fevereiro, em Dresden. A cidade ainda estava coberta pela nuvem de fumaça amarelo-parda que chegava a 4.500  metros de altura e por uma outra fumaça onde flutuavam destroços fragmentados de escombros da cidade.  Essas nuvens chegaram até a então Tchecoslováquia.  Quando a fumaça saiu, depois de três dias, o ar esfriou e choveu, muito, uma chuva suja, carregada de fuligem.   Papéis e documentos queimados, documentos do Escritório de Registro de Dresden, foram cair na aldeia de Lohmen, 25 quilômetros adiante e os camponeses levaram uma semana para limpar os campos das cinzas e detritos da queimada.

A tempestade de fogo foi a maior e mais devastadora jamais vista na Alemanha ou em outro lugar qualquer do mundo. Multidões que corriam para sair do centro das cidade foram colhidas pelo vendaval e atiradas contra as paredes, de volta ao centro do incêndio.  O fogo atingiu seu máximo nas três horas de intervalo entre os ataques, exatamente quando as pessoas começavam a deixar os abrigos para fugir.  E uma vez começada a tempestade nada havia que as forças de combate ao fogo pudessem fazer para contê-lo ou controlá-lo. Logo depois das primeiras bombas faltou telefone e energia, faltou água para os que combatiam o fogo.  Depois, quem estava no serviço de salvamento também foi esmagado pelo vendaval.  Ninguém das brigadas de incêndio ou da defesa civil sobreviveu para contar alguma coisa sobre o maior fogaréu da história, todos mortos no segundo ataque.  Quem viu e viveu falou de línguas de fogo que subiam a  100 e 150 metros de altura, de um vendaval capaz de atirar as pessoas a 100 metros de distância e de um calor que sufocava e matava nas adegas e porões onde muita gente procurou abrigo.

O Circo Sarrasani, de visita à cidade, desapareceu, com todos os seus animais. Um extenso conjunto de túneis sob a Post-platz ligava os principais edifícios administrativos da cidade mas todas as saídas ficaram bloqueadas e quem estava lá dentro morreu sem oxigênio. Dois trens cheios de crianças de 12 a 14 anos, evacuadas por causa do avanço do Exército Vermelho, foram destruídos. Ninguém sobre viveu. Milhares de refugiados que corriam para Dresden seguindo a notícia de que a cidade seria poupada para ser a capital alemã do pós-guerra, tiveram seus corpos empilhados, uns por cima dos outros e não houve tempo nem espaço para sepultá-los dignamente: foram para uma enorme vala comum, para evitar mau-cheiro e doenças.

Só três horas e meia depois do fim do ataque americano foram iniciadas as primeiras grandes operações de salvamento, quando chegaram a Dresden soldados da Defesa Civil com máscaras contra gás, ferramentas para cavar, água e alimento para um dia.  Atravessaram as pontes sobre o rio Elba sem marchar, porque elas haviam sido minadas quatro dias antes e temia-se que a vibração da marcha  provocasse explosões.  Viram logo que os principais pontos de referência da cidade estavam destruídos.  Milagrosamente, o mais famoso deles estava incólume, o zimbório de cem metros da Frauenkirche Georg Bähr.  A Frauenkirche sobreviveu a muitas guerras e foi do seu zimbório que o jovem Goethe contemplou, em 1768, a devastação causada pelo bombardeio da artilharia de Frederico II da Prússia, na Guerra dos Sete Anos.

Dresden já não era mais a cidade de contos de fada, de torres e ruas antiqüíssimas e bem conservadas que, à noite, ficam cheias de gente que saiam dos teatros, dos cinemas, das casas de concerto, do circo ou da Ópera.  Agora cidade estava quieta, vazia.

Abrigados no subterrâno da catedral havia uma enorme filmoteca, os arquivos do Ministério do Ar.  Exatamente quando os bombeiros imaginavam ter controlado o fogo, o calor provocou a combustão do celulóide  e uma explosão violenta que fez desabar o zimbório, às 10 e 15 da manhã do dia 15, completando a destruição de Dresden.

Alguns locais da cidade estavam tão quentes, principalmente as adegas e porões, que não foi possível entrar e recolher as vítimas durante semanas.  Quem trabalhava no recolhimento dos mortos recebia conhaque de hora em hora, para ajudar a suportar a situação.  Os prisioneiros aliados foram chamados a participar da missão de retirar as vítimas das ruas, mas a eles não se oferecia conhaque.  A maioria das vítimas estava de rosto para o chão, literalmente incrustados no asfalto, irreconhecíveis.

“Nunca poderia pensar que a morte pudesse atingir tanta gente de tantas maneiras diferentes”, disse Hanns Voigt, professor de uma das escolas da cidade (completamente destruída) e que escapou porque a escola havia sido transformada em um hospital da Luftwaffe e ele fora removido para uma creche de refugiados a uns 10 quilômetros ao sul.  Ele foi incumbido de tentar identificar vítimas e fazer o levantamento dos mortos.

Em Dresden, durante 90 dias, o cheiro predominante era de queimado e de corpos em decomposição.

No Altmarkt-Square, sob o Monumento da Vitória (erguido depois da guerra Franco-Prussiana) haviam sido construídos grandes tanques de água, de cerca de 30 metros quadrados.  Centenas de pessoas, com as roupas em fogo, mergulharam nos tanques para não serem queimadas.  As paredes dos taques estavam cerca de um metro acima do terreno, mas a água estava a três metros de profundidade.  Quer dizer que, uma vez dentro dos tanques, não havia como sair sem ajuda externa.  Os que não sabiam nadar agarravam-se aos que sabiam e ambos afundavam.  Além disso, a água esquentava cada vez mais, até quase ferver.  Quando as turmas de salvamento abriram caminho até Altmarkt-Square, na tarde seguinte, todas as pessoas estavam mortas e a água dos tanques estava pela metade, por evaporação.

Na Seidnitzerr-platz também havia um tanque de água, de uns 20 metros quadrados.  Não era profundo.  Os bombeiros, quando chegaram, encontraram uma visão grotesca: cerca de 200 pessoas estavam ali, sentadas na borda do tanque, como deveriam estar na hora do ataque.  Todas mortas, e algumas caídas dentro d’água.

Dez dias depois do ataque, a temperatura começou a baixar no interior de algumas adegas e Voigt, para cumprir sua missão, foi assistir a abertura delas.  A primeira ficava em uma casa perto da Pirnaischer-platz.  Um grupo de soldados romenos recusava-se a obedecer as ordens para entrar.  Voigt, para dar o exemplo, resolveu ir na frente, com uma lâmpada de acetileno na mão.  Não sentiu o cheiro característico de corpos em decomposição e respirou, aliviado.  Mas os degraus de descidas estavam escorregadios e o piso da adega estava coberto por uma espessa pasta que ele custou a identificar como uma mistura de carne, ossos, sangue, de pessoas que haviam, literalmente, derretido e cujos restos formavam uma camada de 12 polegadas.

Voigt mandou derramar cal clorado sobre aquela massa e a deixasse secar. Depois soube que ali deviam estar de 200 a 300 pessoas.

Prisioneiros de guerra trabalhando na tarefa de remoção não suportavam a emoção, o mau cheiro, a visão de corpos queimados, esquartejados, contorcidos. Alguns recusaram-se a continuar o trabalho e foram fuzilados no local.

Enormes pilhas de cadáveres foram sendo  formadas rapidamente nas ruas, principalmente as que tinham cinemas, teatros e casas de concerto, lotadas por ocasião do ataque.  Carroças puxadas por cavalos levavam os mortos para a Estação Central ferroviária, onde foram formadas   pilhas de três metros de altura e de vinte metros quadrados, todas as cabeças no mesmo sentido.

Quanto mais avança o trabalho menor a esperança de identificar e até de contar as vítimas de  modo perfeito.  Com famílias inteiras mortos não havia quem reclamasse a falta de um dos seus…  Havia espaço para um funeral decente para todas as vítimas, mas faltava tempo.  O cheiro de corpos em decomposição dominou a cidade por três semanas e o serviço não terminara.  Havia o perigo real de uma epidemia de tifo.

Sobreviventes que reconheciam parentes mortos furtavam os corpos para levá-los, em carrinhos de mão, para um sepultamento cristão. As autoridades acabaram decidindo que ninguém tinha direito pessoal aos corpos de parentes e ofereceram atestados de óbito que não dava a causa mortis, afirmando apenas “morto em Dresden em 13 de fevereiro de 1945”.

Nos termos secos das estatísticas alemãs, para cada cidadão de Munique havia 8,5 metros cúbicos de escombros; em Stuttgart,11,1; em Colônia, 14; em Berlim, 16,5 e em Dresden, para cada um dos habitantes da cidade (incluindo os mortos) 19 metros cúbicos de escombros, quase 12 caminhões carregados por pessoa.

A recuperação da capacidade de produção de Dresden foi rápida, provando que as áreas industriais foram pouco atingidas, mesmo com toda a destruição da cidade. O que aconteceu de pior foi à indústria óptica Zeiss-Ikon e a uma fábrica de soro.

Quanto às vítimas, muitas delas ainda em fantasias carnavalescas, foram empilhadas, junto com fardos de palha nos destroços da loja de departamentos da  Renner.  Eram cerca de 500 e seus corpos  foram queimados e as vítimas magras e mais idosas demoravam mais para pegar fogo, segundo as testemunhas, do que as gordas e as jovens.  Depois que o último corpo foi incinerado, no final da tarde, as cinzas foram reunidas e levadas para uma vala aberta no cemitério. Foram necessários vários carros e várias viagens até o cemitério de Heide-Friedhof.  Nele, as cinzas de um total de 9 mil corpos que foram cremados a céu aberto, foram sepultadas em uma cova de  oito metros por cinco e dois metros de profundidade. “para evitar epidemias e por motivos morais”, segundo as autoridades.

Quantos morreram? O monumento, no local do sepultamento, tem uma inscrição que faz a mesma pergunta: “Quantos morreram?  Quem conhece o total? De suas cicatrizes podem ver o sofrimento da multidão incontável que aqui ardeu até a morte, num inferno de fogo, ateado por mãos mortais”. 

Foram, no mínimo, 100 mil, mais provavelmente 250 mil, porque na noite do ataque a população da cidade era a maior que jamais tivera ou jamais viria a ter.  Foram três vezes mais vítimas do que em Hiroshima, como resultado do bombardeio do terror.

Em 28 de março Churchill assina uma minuta sobre a ofensiva aérea contra cidades alemãs, encaminhando-a aos chefes do Estado Maior:

“Parece-me que chegou o momento em que a questão do bombardeio de cidades alemãs com o fim de aumentar o terror, embora sob outros pretextos, deva ser revisto.  De outro modo, assumiríamos o controle de um país totalmente destruído.  Não devemos, por exemplo, retirar materiais da Alemanha para as nossas próprias necessidades, porque deve ser feita uma certa reserva para os próprios alemães.  A destruição de Dresden permanece uma séria questão contra a conduta dos bombardeiros aliados.  Sou de opinião que os objetivos militares devem ser no futuro mais cuidadosamente estudados, antes no nosso próprio interesse do que no do inimigo.”

“O Secretário do Exterior falou-me a este respeito, e sinto a necessidade de concentração mais precisa sobre objetivos militares, tais como petróleo e comunicações, por trás da imediata zona de batalha, antes do que simples atos de terror e selvagem destruição, embora impressionantes.”

Na relação de agraciados do final do ano, na Lista de Honra do Ano Novo, não constaca o nome  do principal artífice do Comando de Bombardeiros e da tática da tempestade de fofo, Sir Arthur Harris.  Ele deixou a Royal Air Force sem receber qualquer expressão pública de gratidão pelo seu trabalho e foi viver na África do Sul como representante comercial. Embarcou no dia 13 de fevereiro de 1946, data do primeiro aniversário do maior massacre da história da Europa, realizado para fazer ajoelhar um povo que, corrompido pelo nazismo, havia cometido os maiores crimes de que se tem memória contra a humanidade.

Em 1953 ele voltou a Londres porque foi feito Baronete.

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